O Ceará é o terceiro estado do Brasil com o maior número de famílias autodeclaradas como povos de terreiro – são pelo menos 605 espalhadas pelo território cearense. Neste quadro, o Estado fica atrás, apenas, da Bahia (1.883) e do Piauí (857). O número faz parte de um levantamento inédito realizado pelo Ministério Público Federal (MPF) que mostra que, pelo menos, 14.655 famílias se declaram como povo ou comunidade tradicional no Ceará. Já os ribeirinhos são, segundo o estudo, 291 famílias ou grupos que se reconhecem nesta categoria.
O levantamento vem sendo feito a partir do cruzamento de dados do Incra, Funai, Instituto Chico Mendes, IBGE e Cadastro Único. Os grupos têm como característica trazer dos territórios onde vivem e dos recursos naturais que utilizam a condição de sua existência. Ontem (24), o Diário do Nordeste trouxe os desafios vivenciados por dois dos sete povos analisados pelo MPF: extrativistas e pescadores artesanais. E hoje, aborda sobre ribeirinhos e povos de terreiro.
Povos de terreiro
Cores e palavras presentes na tradição são reflexo da resistência religiosa e cultural de quem se autodeclara como povo de terreiro. No Ceará, a luta pelo direito de professar a própria fé se mantém viva.
“A principal dificuldade está na intolerância religiosa. As religiões de matriz africana diuturnamente sofrem com o desrespeito, garantia assegurada pela Constituição Federal de 1988 que, na prática, é constantemente desrespeitada”, lamenta a supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Ceará, Sandra Sá.
Em 2018, após audiência com representantes das comunidades cearenses, ficaram acertados encaminhamentos legais de seguridade ao direito de livre culto. Muitos destes pontos se mantêm pendentes. “Iremos dar andamento aos pontos da pauta dos povos de terreiro, como solicitação de agenda com a Secretaria de Segurança Pública a quem se dirige o maior número das demandas”, garantiu Sandra, pontuando que “a imunidade constitucional é uma garantia, basta que o imóvel esteja inscrito como terreiro”.
O reconhecimento de um terreiro abrange a esfera jurídica – por meio de um Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ); e do autorreconhecimento da comunidade diante das práticas tradicionais. “Quando se fala em quantitativo, não dá para descobrir algumas comunidades por conta de todo o preconceito. A gente sabe da predominância católica na cidade, mas o racismo é parte do motivo”, acredita a assistente social Herlania Batista Galdino, 35, que reside em Juazeiro do Norte.
Por título sacerdotal, no candomblé, ela é chamada de Doné Herlania, e conta que conhece várias casas dedicadas ao culto de religiões de matrizes africanas no município. Apenas na Caminhada Pela Liberdade Religiosa, que acontece desde 2010, todo dia 21 de janeiro (Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa), cerca de 600 pessoas vão às ruas da cidade.
De acordo com o Núcleo de Educação para Promoção da Igualdade Racial (Nepir), ligado à Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Trabalho (Sedest), já foram mapeados 45 terreiros em Juazeiro do Norte, restando ainda mais da metade para ser pesquisada. Criado há um ano e meio, o Núcleo realiza ações educativas no Município.
Segundo Moema Alves, já foram relatados casos de apedrejamento de terreiros, ameaças de morte e realização de cultos de igrejas cristãs em frente aos terreiros numa tentativa de “converter” os praticantes da religião. “A gente acolhe a denúncia, vê se precisa de algum suporte psicossocial”, detalha Moema. A Ouvidoria de Juazeiro do Norte pode ser acionada para os casos de intolerância religiosa e racismo. As denúncias são direcionadas para o Nepir, mas também podem ser feitas pessoalmente, na sede da Sedest.
Ribeirinhos
Às margens do Rio Quixeramobim, o desafio recai sobre o direito à terra. Eliria de Araújo, 64, e Geraldo de Araújo, 73, cresceram, namoraram, casaram e ainda hoje, aos 47 anos de matrimônio, moram juntos na beira do rio, na comunidade de São José, a pouco mais de 15 km do Centro da cidade homônima. Lá, o casal criou os quatro filhos. A família de ribeirinhos já vivenciou dias melhores, quando o rio ainda ofertava água suficiente para as plantações e consumo dos moradores.
“Não era para ser assim se tivesse correndo água. Quixeramobim nunca tinha secado assim. Se esse pedacinho de chão fosse nosso, eu tinha conseguido um empréstimo no banco, perfurava um poço e estava tudo vivo, com irrigação”, diz Geraldo.
Reconhecimento
A comunidade onde eles e mais 39 famílias moram fica localizada na Fazenda Reunida Jacareí, uma propriedade particular com 3.800 hectares de área. Os moradores aguardam um levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para poder comprar seu pedacinho de chão. “Daqui só quero sair para o cemitério”, confessa Euliria.
A barragem e o Açude Fogareiro, de onde a família poderia tirar um alívio, estão secos. Além disso, a água bombeada pela adutora do Açude Pedras Brancas, em Banabuiú, a 60 km de distância, não é suficiente para atender todas as famílias que necessitam do recurso. A saída é contar com o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Quixeramobim, que enfrenta dificuldades para manter a normalização do serviço.
A reportagem entrou em contato com o órgão, mas até o fechamento desta edição não obteve resposta. Em relação ao parecer do Incra, o órgão informou, por meio de nota, “que a Superintendência Regional realizou vistoria na área, que trata-se de uma grande propriedade produtiva, e portanto insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária”.